RIO, SÃO PAULO, NOVO HAMBURGO e BELO HORIZONTE - Em 5 de
março último, Max Fernandes Ritzel dos Santos, de 14 anos, estava no seu
primeiro dia de trabalho em uma construção na cidade de São Leopoldo (RS). Ao
manusear uma betoneira de misturar concreto, sem usar equipamento de proteção,
sofreu um choque mortal.
Na última quinta-feira, após uma semana
no emprego, J.J.R., de 15 anos, limpava por dentro um forno de cal, de 13
metros de altura e dois de diâmetro. O forno desabou e mais de 13 toneladas de
terra e entulho soterraram o adolescente. O trabalho de resgate pelo Corpo de
Bombeiros de Formiga, cidade a 200 quilômetros de Belo Horizonte, durou 12
horas.
As
duas atividades, por serem mais arriscadas e insalubres, são proibidas para
menores de 18 anos no Brasil. Estão incluídas na lista de piores formas de
trabalho infantil que o país se comprometeu a erradicar no ano que vem. A lei
prevê que qualquer forma de trabalho é proibida para menores até 14 anos. Entre
14 e 16 anos, o jovem pode trabalhar apenas como aprendiz. E, mesmo após os 16,
o trabalho em atividades perigosas ou insalubres é proibido.
A
cada dia, mais de cinco crianças e adolescentes são vítimas de acidente de
trabalho no Brasil. A cada mês, pelo menos uma criança ou adolescente morre no
trabalho no país. Levantamento do Ministério da Saúde, com base nas
notificações de unidades de saúde, lista 13.370 acidentes de 2007 a outubro de
2013 com trabalhadores de até 17 anos. Deste total, 504 foram intoxicações,
principalmente com agrotóxicos. E 119 morreram trabalhando.
—
São mortes que podem ser prevenidas. Não dá para a sociedade banalizar como se
fosse parte da vida normal — disse Jorge Machado, coordenador geral da Saúde do
Trabalhador do Ministério da Saúde.
Quase
três mortes por mês em 2012
Os
números da Saúde representam apenas a “ponta do iceberg”, para o médico
sanitarista Francisco Pedra, da Fundação Oswaldo Cruz. Os registros vêm
aumentando. A obrigação de notificar o acidente é de 2004. Em 2007, foram só
551, subindo para 3.565 em 2012. O número informado de mortes também vem
crescendo. Eram cinco em 2007 e 34 em 2012, ou quase três mortes por mês:
—
É um número bem abaixo do esperado. A rede de atenção é precária. Esses números
são apenas a ponta do iceberg. Tem morte que só a família fica sabendo. Entram
na vala comum das estatísticas de saúde como se o trabalho não tivesse nada a
ver com isso. Sem contar as doenças ocupacionais como estresse e lesões por
esforço repetitivo.
Pela
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad/2012), do IBGE, único
levantamento que dá a dimensão do trabalho infantil no país, havia 3,5 milhões
de crianças e adolescentes de até 17 anos trabalhando no Brasil. Dessas, 81 mil
têm de 5 a 9 anos.
Os
números dos acidentes vieram à tona na Comissão Parlamentar de Inquérito do
Trabalho Infantil, da Câmara dos Deputados, que deve concluir os trabalhos em
agosto. A deputada Luciana Santos (PCdoB/PE), relatora da CPI, pretende
recomendar a criação de um cadastro de empresas, nos moldes da lista suja do
trabalho escravo. A inclusão na lista poderia restringir o acesso a crédito
público:
—
Queremos que elas sejam impedidas também de participar de licitações públicas —
diz Luciana.
A
advogada Nilcéia Matheus também defende a divulgação dos nomes de empresas que
fazem uso recorrente de trabalho infantil. Nilcéia afirma que são muitos os
prejuízos para um menor que sofre acidente de trabalho. Ela conseguiu uma
indenização para Walter Anastácio, que perdeu três dedos e a ponta do indicador
da mão esquerda, aos 15 anos, em uma prensa numa empresa de esquadrias de
alumínio no interior de São Paulo:
—
O consumidor tem que ter acesso a esse tipo de informação e optar por escolher
ou não um produto dessa marca.
A
ampliação do Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), com
transferência de renda condicionada à presença da criança na escola em tempo
integral, é outra das propostas que a deputada pretende incluir no relatório:
—
O núcleo duro do trabalho infantil resiste no serviço doméstico, no campo, no
comércio, no carvão, na indústria têxtil e de cerâmica.
O
Ministério de Desenvolvimento Social, por meio de nota, informou que em 20 anos
houve redução de 88% no número de crianças de 5 a 9 anos submetidas ao trabalho
no Brasil. Segundo o ministério, em 2013, “cerca de 850 mil crianças e
adolescentes foram atendidos pelo Peti. Entre janeiro e setembro de 2013, foram
investidos R$ 193,1 milhões no programa.” No programa, as crianças vulneráveis
são identificadas e as famílias são inscritas nos programas sociais do governo
e de transferência de renda. “Durante este período (outubro a dezembro de 2013)
foram investidos R$ 246,4 milhões”.
Queda,
o acidente mais comum
Há
alguns meses, J.T., que hoje tem 32 anos, recebeu do McDonald’s um broche por
ter completado 15 anos de empresa. Seu último dia de trabalho na rede, porém,
foi também há 15 anos, quando tinha 17 anos e sofreu uma queda durante o
expediente. Depois de escorregar, ela bateu a nuca. A jovem ainda sofre com
problemas de memória, mudanças bruscas de humor e tem dificuldades cognitivas.
E briga na Justiça para conseguir o reconhecimento do acidente de trabalho e
auxílio da empresa. Ela não recebe qualquer contribuição para o tratamento e a
empresa se recusa a demiti-la.
—
Eu era registrada como atendente, mas sempre trabalhei na limpeza. Escorreguei
enquanto limpava a máquina de gelo. Não fui orientada a usar um sapato
especial. Caí, desmaiei. Nem sequer fui levada ao médico — conta J.T, que
ganhava R$ 1,60 por hora na época do acidente.
Depois
da queda, J.T. diz que ao chegar em casa ainda se sentia mal, tinha muita dor
de cabeça e tonturas. Foi levada ao hospital de ambulância. Lá permaneceu por
semanas, em estado letárgico, de acordo com sua mãe, que teve de pedir demissão
do emprego para cuidar da filha:
—
Fizeram vários exames e tomografias na minha filha e não encontraram nenhum
problema ósseo. Quando ela acordou, depois de semanas, estava agressiva e a
encaminharam para o hospital psiquiátrico, onde passou meses. Lá diagnosticaram
essa deficiência, causada pelo tombo.
J.T.
toma dois comprimidos por dia, faz terapia e psicanálise uma vez por semana.
Ela diz que já se sente melhor e deixou para trás os sete comprimidos diários e
as três sessões de psicanálise semanais.
O
McDonald’s afirmou, por meio de nota, que “a empresa respeita todas as leis
trabalhistas, principalmente no que se refere ao tema ambiente de trabalho, e
coloca-se à disposição para esclarecer qualquer fato pontual". J.T. não
quis que seu nome fosse citado pelo GLOBO ao McDonald’s. Procurada pelo jornal,
a rede de fast-food diz que “não há na companhia registros de situações como as
descritas pelos ex-funcionários.”
As
ocorrências mais comuns em acidentes de trabalho são queda, traumatismo e
ferimento de punho e mão. Na lista de ocupações mais afetadas, aparecem o
atendente de lanchonete, o embalador a mão, o repositor de mercadorias, o
trabalhador agropecuário, o auxiliar de escritório, o alimentador de linha de
produção e o vendedor de comércio varejista.
Renato
Mendes, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), que já foi o
coordenador do Programa Internacional de Erradicação do Trabalho Infantil, cita
três elementos para acelerar políticas de proteção: tornar universal e
obrigatória a educação em tempo integral, gerar condições para que as famílias
tenham trabalho decente e renda e conscientização social:
—
Nenhuma política terá efeito se a sociedade ainda acreditar nos benefícios do
trabalho infantil. A sociedade é a protetora primária dessas crianças.
O
destino de Max foi traçado com a repetência escolar em 2011. No ano passado,
ele começou a trabalhar num atelier de componentes para calçado e, logo depois,
como servente de obras. A mãe de Max, Roseli Ritzel, lamenta a perda do filho
mais velho, mas não tem a quem pedir Justiça. O empreiteiro que contratou Max é
amigo da família e, assim como o pai do adolescente, trabalha apenas para
sustentar a mulher e os filhos. É autônomo, sem empresa constituída. Segundo
Roseli, o empreiteiro ajudou como pôde.
—
Ele nos deu mil reais que pegou emprestado e também nos comprou algumas cestas
básicas. É uma pessoa como nós, não teve culpa. Como é que vou defender que se
puna alguém por uma fatalidade? — conforma-se Roseli, abraçada ao retrato do
filho.